
Livro II – A Magia Interior
— Capítulo 1 —
As fadas no jardim
Ana abre os olhos de forma melancólica. Acabava de despertar de um sono tranquilo e reparador. Já haviam se passado alguns dias desde o misterioso evento que transportara sua família para aquela cidade tão peculiar. Ainda deitada, observou Tobias dormindo na cama ao lado (ela e Tobias haviam juntado as camas após conjugarem os dois quartos individuais). Olhou para o outro lado e observou a janela do quarto, logo abaixo da qual havia um pequeno móvel com um vaso de petúnias. Na parede adjacente, uma colorida pintura abstrata contrastava com o branco que dominava o ambiente. Movimentou-se em direção à cabeceira da cama e sentou-se, apoiando as costas na mesma e ficou ali, pensativa, por algum tempo.
Seu RRT1, que estava na mesa de cabeceira ao lado, emitiu um sinal. Era uma mensagem de Marlene, para confirmar uma reunião com ela logo após o almoço. Ana apenas observou o aparelho por alguns instantes com expressão neutra. Havia muitas informações para digerir, e ela sentia-se insegura e assustada, sentimento compartilhado, em maior ou menor grau, por todos os recém-chegados. Afinal, haviam “caído de paraquedas” ali, simplesmente arrancados de sua vida anterior. Suspirou, levantando-se logo em seguida. Sentiu uma atmosfera algo misteriosa rondar o ambiente. Ao se virar, viu que Tobias estava olhando para ela.
— Em que está pensando, Ana?
Ela demorou alguns instantes para responder. Fez um tímido e leve movimento de “não” com a cabeça.
— Nada… em nada – disse.
— Tem algo te incomodando, Ana – disse com firmeza.
— É só saudades de casa. Da outra casa. É irônico, não é? Esse lugar é quase um paraíso. Você, Rafael e Bruna estão aqui. Eu deveria estar feliz. Mas esse sentimento de melancolia vive me perseguindo…
Tobias a abraçou carinhosamente. Ana recostou-se confortavelmente em seu peito acolhedor.
— É perfeitamente normal, Ana. Tínhamos toda uma história no outro mundo, e você sabe que é improvável voltarmos para lá. Todos nós sabemos.
Nesse ponto, ouvem uma batida na porta, seguida por uma voz de criança.
— Mãe!
Ana se afastou um pouco.
— Pode entrar – disse.
Bruna entrou saltitante, puxando o irmão ainda com semblante sonolento.
— Alguém desliga ela, por favor – disse Rafael, preguiçosamente.
Observada pelo sorridente Tobias, Ana brincou, apertando levemente o nariz de Bruna.
— Deixa eu ver se desliga aqui – pequena pausa. – Ih, não deliga! – pegou a orelhinha de Bruna. – Então vamos ver se é aqui. Ih, também não é!
Bruna gargalhava deliciosamente com a brincadeira da mãe, que se empolgou, abraçando efusivamente a filha. A melancolia que sentia desapareceu como num passe de mágica.
— Mamãe, quero ir no Bosque das Mil Coisas. Eu vi uma fada lá.
Ana franziu as sobrancelhas.
— Está bem – disse. – Meu compromisso com Marlene é só à tarde mesmo.
— Ah, isso não é justo… – reclamou Tobias. – Porque só eu tenho que ir catar folhas?
— Porque foi só você que aprontou – respondeu Ana.
Tobias bufou levemente, ante o semblante ainda sonolento de Rafael, que disse:
— Bom, preciso acordar mesmo. Agora de manhã tenho que me apresentar no Cepesq II2.
Ana sorriu.
— Quase me esqueci. – disse. – Parabéns pelo novo emprego!
— Nem sei se é um emprego. Esse lugar está me dando um nó no cérebro.
— É, em todos nós. Mas você vai ser pontuado, não vai?
— Sim. Um ponto-padrão por hora.
— Então acho que é um emprego…
Tobias levantou-se e colocou a mão no ombro de Rafael enquanto Ana saía do quarto com Bruna. Algum tempo depois, todos estavam sentados à mesa para tomar o tradicional café da manhã: leite com café, pãozinho com manteiga e suco de laranja com uma fatia de mamão. Terminado o café, se vestiram mais adequadamente para sair.
Do lado de fora, um céu límpido com poucas nuvens e azul inspirador estava à espera da família. Foi Ana quem pegou o veículo da família para dirigir. A primeira parada foi no jardim, onde Tobias cumpriria a pena alternativa. Lá, encontrou Júlia e os dois androides PSI311 que os acompanhavam nos trabalhos (Alfredo e Tamara).
Ana prosseguiu então até o Cepesq II onde deixou Rafael e tomou direção do Bosque das Mil Coisas.
Já caminhando com Bruna por uma das infindáveis trilhas do Bosque, Ana comenta observando atentamente o entorno:
— Estou cada vez mais fascinada por este lugar.
— É um bosque mágico, mamãe – respondeu Bruna. – Quero encontrar minha fadinha. Eu vi ela lá na frente.
Ana sorriu. Já tinha visto algumas crianças brincando com pequenos seres voadores que tinham asas de borboleta e pareciam fadas. Ela deduziu que se tratava de pequenos robôs de brinquedo, e que, talvez fosse isso que sua filha tinha visto. Bruna não estava com pressa, apesar de querer ir ao local onde, supostamente, tinha visto a fada. Caminhavam tranquilamente. Aliás, a tranquilidade era uma característica da cultura ybymarense que quase todos os viajantes3 estavam começando a assimilar. Isso tinha suas vantagens, principalmente ali, no Bosque das Mil Coisas. Podiam observar detalhes no caminho que perderiam se tivessem pressa. E haviam muitos, mas muitos detalhes mesmo, para se ver no Bosque.
— Olha, mamãe! – exclamou Bruna, apontando e olhando para cima.
Ana olhou para cima e disse:
— Um caxinguelê!
O animal estava no tronco de uma árvore, descendo de cabeça para baixo. Ana dirigiu-se à filha:
— Sabe, Bruna, de onde viemos, os índios acreditam que é na forma de um caxinguelê que nossa alma vai para o céu quando a gente morre.
As duas observavam o pequeno animal, fascinadas com sua habilidade de descer de cabeça para baixo. Ao chegar no solo, ainda podiam vê-lo. Bruna estendeu os bracinhos convidando-o a se aproximar. Ele veio, ligeiramente receoso, até que encostou o focinho na mãozinha da sorridente Bruna, que conseguiu acariciá-lo por alguns instantes antes que ele corresse de volta para a árvore e subisse agilmente a mesma. Ana, satisfeita, acompanhava a cena. Então disse, fazendo alusão à extrema agilidade do pequeno animal:
— Não é à toa que o chamam de serelepe também.
Então pegou a mão de Bruna.
— Vamos – disse.
Mais à frente, encontraram uma pequena praça com um rústico quiosque no meio, onde podiam descansar, beber água e satisfazer outras necessidades. Era um ponto de convergência de várias trilhas, de forma circular, com bancos a céu aberto em volta do “círculo” da praça.
Ana e Bruna sentaram-se em um dos bancos, com o intuito de observar o local. Dali, viram um pequeno e agitado grupo de micos-leões em uma árvore próxima. Quase do outro lado da praça, um tucano agitava vagarosamente as asas. Mas foi outro animalzinho que chamou a atenção das duas.
Um pequeno pássaro de asas pretas, cabeça avermelhada e peito amarelo havia pousado no banco, a menos de um metro de Bruna. Elas ficaram absolutamente imóveis para não espantar a pequena e linda ave que, curiosa, aproximava-se, lenta e ziguezagueante, de Bruna. As duas observavam, sorridentes, os movimentos do pássaro. Ele, então, num salto, subiu em uma das pernas de Bruna, que sorria empolgada mas mantinha-se imóvel. A ave deitou-se ali. Bruna levantou lenta e cuidadosamente o braço direito e acariciou sorridente a cabecinha da pequena ave com a ponta do dedo indicador. Depois de alguns segundos, ela levantou-se e alçou voo, sob os olhares atentos e satisfeitos de Bruna e Ana.
— Vai ter um desejo realizado! – disse uma mulher que estava a uns dois metros e havia observado a cena.
Elas voltaram para a realidade.
— Como?! – exclamou Ana, ainda inebriada.
— Era um uirapuru. Quem encontra um tem um desejo realizado – complementa a mulher.
Bruna animou-se.
— Vou conseguir ver minha fada! – exclamou.
A mulher continuou:
— O Jardim das Fadas é logo ali adiante. Quem sabe uma fada escolhe você – disse, apontando para Bruna.
Bruna levantou-se e puxou a mãe.
— Vamos, mamãe, quero encontrar logo a fada!
— Eu te desejaria sorte, mas você não precisa – disse a mulher, fazendo menção ao uirapuru.
Ana ainda conseguiu ver a linda ave pousada em um galho antes de seguir com Bruna pela trilha que as levaria ao Jardim das Fadas. Era um local bastante colorido, com pequenas árvores decoradas, um pequeno lago e casinhas em forma de flor, que prosseguiam desaparecendo em vegetação densa. Tudo em miniatura. Até mesmo a trilha por onde passavam era estreita, composta por pedras separadas, onde apenas uma pessoa por vez conseguia passar sem problemas.
Bruna seguia cautelosamente e Ana a copiou. Entretanto, estava intrigada. Ficara assim desde o encontro com a mulher e com o uirapuru, quando ela disse que uma fada poderia adotar Bruna. Já tinha visto tantas coisas incríveis naquela cidade que começava a imaginar que, talvez, fosse possível haver fadas de verdade ali.
De qualquer forma, prosseguiu pacientemente com Bruna por cerca de meia hora, admirando e curtindo a filha. Caminhava pelas trilhas estreitas e enfeitadas com petúnias, até que começou a se cansar. Então Bruna parou, olhou para a mãe e colocou o dedinho na frente dos lábios pedindo silêncio. Ana ficou intrigada novamente, franzindo as sobrancelhas. Bruna ajoelhou-se, estendeu cuidadosamente um dos braços e fez um movimento convidativo.
— Vem, vem cá! – disse, com todo o cuidado do mundo.
Ana perguntou-se cochichando:
— Será?
Após alguns instantes, uma minúscula criatura humanoide de pouco mais de um palmo de altura e corpo feminino saiu hesitante de trás de um pequeno arbusto. Não usava nenhuma roupa e tinha um par de lindas asas coloridas e membranosas retraídas no dorso. A criaturinha abriu as asas por alguns instantes, o que fez que com ela se parecesse com uma borboleta. Bruna sorria largamente enquanto chamava o pequeno ser, que se aproximava lenta e hesitante.
Ana ficou perplexa. Não podia acreditar no que estava vendo. Ao se aproximar de Bruna, a pequena criaturinha estendeu os minúsculos bracinhos em direção às mãos de Bruna e tocou seu dedo médio. Sua minúscula mãozinha mal cobria a ponta do dedo de Bruna. Ana abaixou-se e aproximou uma das mãos do pequeno ser, que também tocou seus dedos.
Então ela percebeu várias dessas criaturinhas por ali, meio escondidas mas curiosas, com aparências masculina e feminina. A fadinha subiu nas mãos de Bruna e se aconchegou.
— Como foi que nunca vi essas fadinhas? Será que estou sonhando? – perguntou Ana para si própria.
— Não, não está sonhando – falou uma voz masculina.
Ana levantou-se, olhando em direção à voz. Era um homem que aparentava meia idade, usando roupas de colorido vivo, de forma que meio que se camuflava naquela paisagem.
— Olá, meu nome é Kayke. Sou responsável pelas fadas.
— Ana – respondeu estendendo a mão e fazendo uma expressão de que estava meio perdida.
Bruna levantou-se, feliz, com a fadinha nas mãos. Kayke continuou:
— Você nunca veio aqui, no Jardim das Fadas, não é?
— Eu não – respondeu Ana. – É a primeira vez. Mas a Bruna veio aqui ontem.
— Olha só… – sorriu. – Em dois dias já conquistou Maiara… Deve ter um coração muito puro.
Kayke, então, voltou o olhar para Ana, enquanto dizia:
— Fadas são extremamente empáticas. Sabem o que estamos sentindo e quando podem confiar na gente.
— Curioso… – ponderou Ana. – Bruna também é bastante empática.
Kayke sorriu.
— Bom, parece que Maiara adotou uma mãe, mas você precisa concordar para que Bruna possa ficar com ela.
Ana sentiu um calafrio.
— Como assim? Não faço e menor ideia de como cuidar de uma fada…
— Não se preocupe quanto a isso. Fadas são bem independentes. Além disso, ensinarei Bruna a cuidar dela.
Bruna, então, levou a fadinha até as mãos de Ana, que a pegou temerosa.
— Ela é muito leve… – reparou. – Não sei se podemos ficar com ela, Bruna. Tudo isso é muito… novo…
— Deixa mãe, deixa… – disse Bruna saltitando, enquanto Maiara fazia uma carinha pidonha.
— Não é tão comum uma fada escolher alguém. Além disso, ninguém recusou até hoje – disse Kayke.
Ana, com um semblante de admiração e pena, olhou para o rostinho pidonho do pequeno ser. Seu coração amoleceu.
— Tá bom, a gente fica com ela.
A fadinha sorriu, bateu as asinhas coloridas e voou até o ombro de Bruna, abraçando como pôde e enchendo ela de beijinhos. Bruna deu uma gostosa risada. Ana ficou intrigada.
— Parece que ela entendeu o que eu disse… – comentou.
— Elas entendem quase tudo que falamos – explicou Kayke. – Verá que são muito inteligentes.
Ana meio que queria se arrepender mas desistia ao ver a felicidade de Bruna e de Maiara. Suspirou fazendo uma expressão do tipo “então vamos ver no que isso dá”. Depois de alguns instantes, foi educadamente interrompida por Kayke:
— Por favor, me passa seu RRT para que possa entrar em contado comigo se precisar.
Ana tirou o RRT da bolsa. Ainda não havia se acostumado a usá-lo no braço. Apenas aproximou o aparelho daquele que estava no braço de Kayke e, com um comando simples, o RRT de Ana registrou o de Kayke e vice-versa.
— Não vai se arrepender – disse. – Me manda alguns vídeos.
Kayke mudou a expressão para um semblante meio triste.
— Já estou com saudades dela… – disse.
Ana sorriu um meio sorriso em tom de dúvida. Então fez um sim hesitante com a cabeça.
— Vamos, Bruna.
Virou-se para voltar, mas, antes de ir embora com Bruna, a fadinha voou até Kayke e se despediu dele com um beijinho em seu rosto comovido mas feliz, em que uma pequena lágrima solitária deslizou. Ele já havia passado pela mesma situação outras vezes, mas sempre se emocionava quando uma fada era adotada. Sabia que sentiria saudades, mas jamais tiraria de uma criança a felicidade de ter uma fadinha a seu lado.
1 Significa Rádio-Relógio-Telefone. É equivalente a um aparelho celular, mas evoluiu a partir do relógio de pulso, sendo geralmente usado na forma de um bracelete largo.
2 Sigla oficial do Centro de Pesquisas II de Ybymarã. O acelerador era o Cepesq I.
3 “Viajantes” foi o nome dado pelos ybymarenses às pessoas que foram transportadas até a cidade no evento que ficou conhecido como “A Bolha”.
Quer mergulhar de cabeça na magia? Clique abaixo e adquira o livro!


